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Andei durante anos com o contacto da Associação Coração Amarelo na agenda com a intenção de um dia lhe oferecer os meus préstimos. Depois de ter tido filhos, a minha condição de mãe-que-passa-metade-da-semana-fora-de-casa dificultou as coisas e nunca consegui arranjar disponibilidade para oferecer duas horas (ou o tempo que fosse) da minha semana para fazer companhia a uma pessoa idosa que estivesse sozinha. Quer dizer, as duas horas eu até conseguiria arranjar, o compromisso do dia e hora marcados sem poder defraudar a pessoa é que seria impossível manter. Assim, com muita pena, nunca contactei a Associação e nunca fiz companhia a ninguém.
Ora deu-se o caso de há uns tempos, em conversa com alguém, eu ter ganho consciência de que dentro da minha própria família há várias pessoas acima dos 80 anos cuja companhia me é preciosa e que muito apreciam a surpresa de uma visita não combinada. Fiquei a matutar em quão retorcido me parecia andar a bater a portas para oferecer os préstimos da minha pobre companhia a uma instituição quando não faltam destinatários para ela aqui mesmo ao meu lado.
E assim decidi instituir alguma organização nas visitas erráticas que faço aos nossos velhotes (a minha mãe, com 74 anos, é a 2ª mais nova de 5 irmãos por isso velhotes é coisa que não nos falta na família) e prometer a mim própria tentar nunca falhar 1 visita + 1 telefonema semanal.
Tenho mais ou menos conseguido, sem dificuldade nenhuma (o facto de os meus filhos adorarem frequentar as casas em causa ajuda bastante). Estou a falar de tios que não têm falta de companhia e que passam parte do tempo rodeados de filhos, netos e sobrinhos e por isso fico ainda mais sensibilizada com o prazer evidentíssimo que as minhas aparições lhes dão. Poder-se-ia pensar que nenhum eles, com tantos filhos e coisas do género, não precisaria de mim para nada mas é gigante a satisfação que lhes dá uma visita, por mais breve que seja (a eles e a mim, que não concebo a minha vida sem frequentar estas casas) e essa alegria é uma recompensa gigante.
E depois, claro, pode parecer que se está a fazer uma coisa por outra pessoa mas a verdade é que somos nós que acabamos a ganhar mais.
Na última visita que fiz à nossa tia Ita, que estava um bocado abatida, pedi-lhe que me contasse a recordação mais antiga que tinha. Quando mergulha no baú das recordações, ninguém se lembra que a dita Ita tem 88 anos porque a memória do passado - e a do presente também - mantém-se intacta e muito presente (e muito divertida também). Lembrava-se de ter três anos e ter fugido de casa para ir aos avós (uma caminhada de dez minutos) de ter chegado e de as tias que lá moravam lhe perguntarem:
- aonde vais, meu amor?
e ela:
- shh, que ando fugida!
A história foi contada de uma maneira tão sentida e a Ita transportou-se tão profundamente para os seus três anos e para a recordação da casa dos avós, que adorava, que só por isso a conversa já teria valido a pena. Mas ela entusiasmou-se e continuou a partilhar memórias com tanta graça* que eu saquei de um papel (por acaso roubei-o às priminhas de três e seis anos que estavam a desenhar na sala) e desatei a anotar tudo.
Lembro-me imensas vezes do escritor António Alçada Baptista dizer que achava muito subestimado o valor da ''pequena história'' na grande História do nosso tempo. Posso dizer com toda a verdade que a minha pessoa não padece deste mal. Pelo-me por pequenas histórias e registo-as com um frenesim quase histérico, sempre com os meus filhos em mente porque sei que um dia vão adorar ler estas coisas. Que no fundo é a razão de este blog existir. A nossa Ita está completamente comigo nesta.
Mantenho a vontade de um dia me juntar à Coração Amarelo e tenho a certeza de que a oportunidade chegará. Os mais velhos da minha família apreciam as minhas visitas mas solidão não é mal que lhes assombre os dias, mesmo que eu não apareça. Mas há por aí tantos e tantos que passariam a semana sem falar com ninguém se não fosse o voluntário da Associação...
* Não me passava pela cabeça que a nossa mãe, que foi uma criança muito doente, fosse levada ao Dr. Cardoso, a S. Cosme, a pé, num cesto carregado à cabeça pela caseira dos nossos avós. Caraças, a vida era mesmo difícil.