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Sei bastante sobre ele. Numa noite de Dezembro de 2005, eu e o meu ainda não marido chegámos a casa por volta da meia-noite, depois de uma ida a casa de amigos. Fui a primeira a entrar no prédio e, ainda antes da luz acender, tive a percepção de qualquer coisa estranha no ar. Meio segundo depois apercebi-me dos vidros partidos que cobriam parte das escadas, na zona abaixo da clarabóia que dá para o sótão do prédio. Em menos de um minuto tinhamos percebido que era melhor ligar para a polícia e assim fizemos. Eu tremia e não me opus quando o S. decidiu subir até ao nosso andar, o último, e ver o que se passava. Depois de a polícia - e do meu pai - chegar percebemos que quando entrámos no prédio, os ladrões ainda lá estavam, em pleno processo de arrombar a entrada, fragilíssima, que ligava o sótão do prédio ao interior da nossa casa. Não chegaram a fazê-lo porque fugiram quando nos sentiram a subir as escadas. Como disse um dos simpáticos polícias que nos acudiram, tivemos imensa sorte, entre outras razões, porque não estávamos em casa. Um bocado depois foram embora, polícia e pai, limpámos os vidros, avisámos os vizinhos e ficámos nós os dois e a tarefa de passar a noite numa casa de tecto quase arrombado, telhado partido e, no meu caso, a horrorosa certeza de estarmos à mercê da vontade de quem quisesse violar a nossa casa e devassar as nossas vidas. Uma história não muito diferente - e bem mais suave - das de várias pessoas que conhecemos cujas casas foras assaltadas e todos limparam, arrumaram, contabilizaram os estragos, reforçaram a segurança e andaram para a frente. Eu não. Este incidente foi o 3º de vários que me davam a certeza de que o nosso pequeno prédio estava na mira de um grupo de assaltantes que não tencionava desistir dele. A nossa rua era (e é) parte da rota bi-diária do trajecto de uma grande comunidade de toxicodependentes entre o sítio onde compram e os sítios onde moram e era frequentíssimo ir à janela e ver tipos que noutros sítios do Porto já vira a assaltar carros (yes) a circular. Os vidros do nosso carro foram partidos tantas vezes que lhes perdemos a conta. Na sequência destes acontecimentos - e vários outros que não cabem aqui - entrei numa espiral de pavor de que levei muito tempo e algumas sessões de terapia a libertar-me. Medo, tenho sempre, mas vou conseguindo mais ou menos que a minha rotina e a minha vida em geral não sejam reféns dele. Durante meses, não fui capaz de ficar sozinha na sala da minha casa. Odiava a casa. Ir ao pátio, nem sozinha nem com companhia. Sempre que saía, ia à janela ver quem circulava na rua. Olhava para as pessoas com desconfiança. Não punha os pés na rua sozinha depois de anoitecer. Se saíamos juntos para jantar ou ir a casa de amigos, passava o tempo alheada a pensar apavorada no momento de chegar à rua, ter de sair do carro e entrar no prédio e em casa. Ficava a olhar para as outras pessoas cheia de inveja porque as imaginava a chegar a casa ao fim do dia descontraidamente, sem sequer lhes ocorrerem os pensamentos de pavor que me dominavam. Desejava que morressem as pessoas com quem me cruzava na rua e me pareciam ter um ar suspeito.
Um exagero? Sem dúvida, mas foi exactamente assim que me senti durante muito, muito tempo e estou consciente de que é só voltar a acontecer um incidente desta natureza e eu volto a desabar. Que ninguém atire a primeira pedra que basta já levar alguns anos desta vida para saber muito bem que o transtorno psicológico está sempre à coca e não conheço ninguém que se possa dizer livre de ficar apanhadinho. Basta a conjugação certa de circunstâncias.
E eis-me no ponto onde quero chegar. Face à minha própria incapacidade para sair do vórtice do medo por circunstâncias tão menos dramáticas, fico siderada com a coragem demonstrada por alguns:
Possivemente não há quem não saiba mas eu digo outra vez: na primeira linha na foto estão o cartoonista Luz e o cronista Patrick Pelloux que sobreviveram à chacina no Charlie Hebdo (P. Pelloux é paramédico e ajudou no socorro aos colegas) e se colocam na primeira linha da manifestação de ontem e falam sem equívocos na televisão, manifestando a sua determinação de continuar a trabalhar, contra o medo.
Uma vénia também a estas pessoas:
A mim, que não tenho coragem nenhuma, gestos de solidariedade sujeitos a pôr em causa toda a estrutura da vida de quem os pratica e que tem tudo a perder são tamanhas demonstrações de bravura que me deixam sem palavras.
E, claro, os que morreram.
Então, vamos lá: