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Não suporto médicos que fazem conversa de chacha enquanto nos atendem. Quando tenho de ir a uma consulta, espero ser atendida com cortesia, atenção e rigor, em circunstância alguma que o médico que me atende se ponha a contar a vida dele. Se for um médico a quem vou recorrentemente, aprecio que se estabeleça uma espécie de ... relação, vá, de consideração e apreço mútuos.
As mazelas da meia idade obrigam-me a recorrer mais ou menos duas vezes por ano a uma consulta de Medicina Interna. O médico foi-me recomendado por amigos do mesmo ramo numa altura em que eu estava muito aflita mas não queria ser seguida por nenhum deles (nem eles queriam acompanhar-me!). Cheguei à consulta curiosa porque me tinham dito que uma das razões para terem escolhido a especialidade tinha sido o facto de se terem cruzado com aquele professor que, entre outros atributos, era ''uma das mentes médicas mais brilhantes que já conheci''. Digo-vos, deve ser mesmo, uma mente médica brilhante mas não só intelectualmente. Impressionou-me muito disponibilidade para ouvir e outra sensação que não sei definir mas que é recorrente nas consultas. Impressionou-me o interesse em ouvir. Tenho a certeza de que, mesmo que não lho tenha dito, esse médico tem consciência do poder das palavras dele e usa-as em benefício do paciente. Sabe que é completamente diferente apresentar-me o mesmo diagnóstico de uma ou de outra maneira, que diante da mesma maleita, dependendo do modo como ele falar, eu saio de lá na merda ou cheia de confiança no futuro (saio sempre confiante). Diz sempre as coisas da maneira certa, sem rodeios e com uma linguagem tão precisa como um programador informático. Não sendo psicólogo nem psiquiatra, é muito mais psicólogo e psiquiatra do que alguns com que já me cruzei.
Ah, mas não era nada disto que queria dizer.
Um amigo contou-me da sua revolta por o médico que acompanha a avó na doença que a vai minando, depois dos últimos exames, lhe ter apresentado o prognóstico com uma secura chocante e completamente despojada de esperança. Uma besta, esse médico.
Há mais ou menos cinco anos, também nós desaguámos numa consulta de neuropediatria, com uma médica bem recomendada. Lá se fez o que havia a fazer e no fim saímos porta fora com a certeza absoluta de que naquele consutório nunca mais poríamos os pés.
Há menos tempo, numa consulta hospitalar com pessoas por quem até temos bastante apreço, enquanto esperávamos por um papel qualquer, à nossa frente a médica ria com as internas que lá tinha a acompanhar a consulta, a contar de uma mãe, cujo filho tinha nascido com um problema gravíssimo, que o tinha levado a França para ouvir uma segunda opinião e vinha horrorizada porque lá não sedam as crianças a quem fazem ressonâncias magnéticas, enfaixam-nas tipo múmia para as impedir de se mexerem. E riam, riam.
Há menos tempo ainda, vi um comportamento parecido no técnico e no anestesista que estavam de serviço no dia em que precisámos deles.
O que há de comum em todos estes episódios que me ficaram gravados? A falta de compaixão dos médicos e dos técnicos. Não precisam de ser os mais brilhantes, não precisam (nem podem!) derramar lágrimas com os pacientes, não têm de ser amigos, não precisam de se deixar envolver mas não serem compassivos com o sofrimento dos outros é uma coisa muito pouco natural e incompatível com a qualidade na profissão que escolheram.
« ... não sei o que nos espera mas sei o que me preocupa: é que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a individualidade única de cada pessoa que sofre. Não se descobriu ainda a forma de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão.»
Ontem à noite, quando o mandei para a cama, levei pela 2453ª vez com ''que chata, porque é que eu tenho uma mãe tão chata''. Esta manhã acordei com o mesmo filho encostado ao meu ouvido esquerdo a cochichar amorosamente ''surpresa, estou aqui''. Do lado direito tinha o outro filho, em competição aguerrida por cada cm2 do meu corpo a que se pudesse encostar. O dono da cama, esse já tinha desistido há um bocado e estava a ler, deitado no beliche de baixo. Lá fui dormitando mais um bocado, ao ritmo dos puxões que os dois me iam dando enquanto se empurravam um ao outro. Às tantas, já não sou eu o objecto da competição e eles estão é embalados pelo gozo da luta. De repente, o Vasco cai nele, percebe que o outro tem mais força, começa a ficar lixado e decide jogar sujo: ''mãe, quero fazer xixi e não sei apontar sozinho''. Enquanto o acompanho à casa de banho, diz com um sorriso velhaco ''o mano não tem ninguém com ele na cama''.
É uma felicidade poder levar um pedacito de alegria às vidas de outros e trazê-la, ao mesmo tempo, para a nossa.