Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Quando era pequena achava uma curtição a diferença evidente entre a maneira como eu e a minha irmã falávamos e as coisas que os nossos primos diziam.
Se em pequenita via essa diferença com estranheza, na adolescência com sobranceria - fui uma besta de adolescente -, como adulta jovem com naturalidade, agora, como mãe de filhos do Porto que falam à Porto, deliro.
Os meus filhos dizem ''saca'' em vez de saco, ''vagem'', quando não é bágem, ''aguça'' para um afia e, a minha preferida, ''um nadinha''. Ouvimos constantemente ''quero mais um nadinha de ...''. Adoro.
A caminho do último domingo em Lisboa, deixei a bagagem na mala do carro de uma amiga. Está bem que era quase só roupa interior, tenho em casa dos meus pais tudo o que é preciso para duas ou três noites, o trágico da cena é que dentro do carro da OM ficou também o livro que estou a ler, e assim me vi com duas horas dentro de um comboio, sem livro, revista ou maneira de aceder à net. Tinha-me armado em emancipada e decidido passar um fim-de-semana livre de computador, o telemóvel estava quase sem bateria. Ressaquei mas sobrevivi (mal).
De regresso a casa, peguei noutro livro da mesa de cabeceira, mais ou menos ao acaso, para preencher o vazio da falta do outro (só vou rever a OM e o seu carro na 6ª feira). Sem expectativa, só o tinha comprado por ter lido numa entrevista sobre este livro uma alusão a um artigo de uma pessoa que já morreu e que eu prezava. Quando comecei, desdenhei. Ao fim de vinte páginas, entrei. E adorei.
Recomendo às minhas amigas que diariamente bufam de exaustão por causa da via-sacra da educação dos filhos adolescentes. Como poderão ver se lerem o livro, não são as únicas.
O livro, de título brilhante, é
António, és um menino feliz?
''Mais ou menos, o Vasco é mais.''
Achas? Porquê?
Uns momentos de reflexão, enquanto mastiga ruidosamente (muito ruidosamente) uma fatia de pizza.
''Porque às vezes as pessoas dão-me presentes que eu já tenho. Por exemplo, uma vez a Samicas deu-me um puzzle que eu já tinha. Quero fazer cocó.''
Ah.
Não sou leitora de banda desenhada. O homem da casa já tentou. Pensou e seleccionou com amor o melhor do seu acervo. Escolheu criteriosamente três ou quatro livros que acha obrigatórios e acessíveis a não iniciados. Passou-mos e ficou à espera da reacção. Eu, um penedo, como em todas as outras tentativas. Irrita-me, distrai-me, não consigo. Os desenhos são ruído, não me deixam concentrar no essencial, que é o texto. Desisti, nunca hei-de gostar de ler banda desenhada. Sei que sou uma parede, um boi, um penedo, uma besta, um tronco e aqui e agora faço o meu coming-out: sou a Titi e não gosto de banda desenhada.
And yet ... esta prancha, oh esta prancha maravilhosa ...
Como apregoei infinitas vezes aqui e em todos os sítios onde estiveram para me ouvir, o Vasco deu-nos noites tormentosas até perto dos três anos. Houve noites de tamanho desespero que estou certa de nem sempre o ter tratado com a serenidade e a paciência de que ele precisava mas estava exausta e em muitos momentos pensei que não aguentava nem mais uma noite assim. Chorava (ele e eu), contorcia-se, dava sapatadas no ar, chamava, sentava-se, queria brincar, queria o pai, queria a mãe, queria colo numa posição específica, um horror. Idas à pediatra, telefonemas para a pediatra, Atarax, gotas naturais, mudar o leite, eliminar o leite, tentámos tudo. Estivemos a um triz de contratar um senhora que faz vida de ir passar noites a casa de pessoas em situação limite, acalmar bebés com o nosso.
Fiquei mais burra, mais desmemoriada, mais olheirenta e com muito mais cabelos brancos do que se não tivesse tido um filho assim. Aliás, se ele tivesse sido o primeiro, tenho sérias dúvidas de que nos tivéssemos atrevido a deitar ao mundo um segundo.
Agora, com três anos recém feitos, a coisa mudou. É verdade que é rara uma noite sem nos chamar mas basta que eu me enfie na cama com ele e, geralmente mas não sempre, sossega e dorme. Sim, a meio da maioria das noites mudo para a cama dele. Não é a maneira certa de fazer a coisa (a coisa=educar)? Não promove a autonomia, a independência, a auto-estima, essas cenas? Olhem para mim preocupada. Consigo dormir mais do que quatro ou cinco horas interrompidas, logo parece-me o arranjo perfeito. Pelo menos, o possível para me aguentar de pé durante o resto do dia.
Depois de uma série de noites boas, na madrugada de sábado voltei a ver a vida a andar para trás. Estávamos a passar o fim-de-semana na casa dos meus pais e a dormir todos no mesmo quarto. Às cinco da manhã ouço:
''Mãe!''. Fiz-me moita.
Outra vez, ''Mãe!''.
E eu, ''Cala-te que acordas o António''.
''Mãe, temos esqueleto no corpo todo?''
''Sim, temos. Dorme.''
''E ele morde?''
''Dorme.''
''O esqueleto é mau?''
''Porque é que estás a pensar nessas coisas agora? É hora de dormir!''
''Vi no livro do ''corpo-do-mano''.
Depois, lá se apaziguou com a imagem do esqueleto do livro do corpo humano e dormiu. Eu é que já não. Outra vez.
Como, mas como é que se deu esta cena inusitada de eu estar sozinha numa casa silenciosa e arrumada num serão de sexta-feira, com marido e filhos a caminho de Lisboa?
Resposta:
a minha versão: como o esposo tem uma reunião em Lisboa amanhã, decidimos ir lá passar o fim-de-semana. Como se dava o caso de eu me ter inscrito neste workshop e estar à espera do dia com grande expectativa, decidimos que os homens da casa partiriam hoje e eu me juntaria a eles amanhã ao fim do dia, de comboio.
a versão que o António me contou que contou na escola: vamos passar o fim-de-semana a Lisboa porque os avós estão sempre cheios de saudades nossas, coitados, a mãe vai só no sábado porque vai a um workshop para aprender a escrever melhor em blogs.
Na versão A ou na versão B, perspectiva-se um grande fim-de-semana, a acrescer ao facto de as notícias da consulta de hoje não terem sido más. Correcção: perspectiva-se um grande fim-de-semana.
Contra todas as evidências em contrário, a alegria
Manuel Gusmão, Teatros do Tempo, Editorial Caminho (2001)
Então a Ginjinha das Portas de Santo Antão está em risco de fechar para ser construído um hotel de charme?! A Assembleia Municipal de Lisboa aprovou um plano para retirar a calçada portuguesa?!
Por mim estejam à vontade... até podem implodir aquele palácio cor-de-rosa para os lados de Belém que seguramente ninguém dará pela sua falta.