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A morte do escritor Urbano Tavares Rodrigues, com praticamente noventa anos, deu azo a uma torrente de manifestações de pesar de pessoas que com ele contactaram pela via da literatura, do ensino, da militância política ou da intervenção civíca e serão certamente justíssimas as homenagens. Só facto de manter intacta a lucidez e o apuro do intelecto numa fase tão tardia da vida já é extraordinário e ele escreveu e interveio até muito recentemente. Curiosamente, a faceta do senhor que mais me despertava simpatia era a de pai super tardio de um filho que agora deve ter seis ou sete anos e que ele, era claríssimo nas entrevistas, adorava. Nos últimos anos, o filho pequenino era sempre assunto puxado nas entrevistas que li e ouvi e referia sempre, sempre, a tristeza que lhe causava saber que não o veria a crescer. Ouvi-o a contar mais de uma vez que tinha ecrito uma carta para o filho ler quando fizesse dez anos. Achei muito bonito. Gosto dele, pronto.
A minha mãe contou-me que ontem foi visitar uma tia por afinidade que já vai nos noventa e quatro anos e alterna momentos de total lucidez com outros em que a cabeça está baralhada e nem sempre sabe quem são as pessoas menos próximas. Os meus pais apanharam-na num dia dos melhores, conheceu ambos perfeitamente, relembrou histórias passadas, esteve muito bem disposta. Enumerou netos e bisnetos e, às tantas, largou esta: ''Tenho muitos beijos, não me faltam beijos''. Poderá toda a gente dizer o mesmo?
A minha sogra tinha uma tia que morreu (no dia dos anos) bem depois dos noventa. Era uma pessoa tão amorosa, tão agradável, tão querida que era património da família toda e eu própria, aquisição relativamente recente na família, a ia visitar com muito gosto e levar-lhe o meu filho bebé ao lar de freiras idosas onde vivia. Gostava imenso de lá ir, de falar um bocadinho com aquelas senhoras velhinhas que por lá circulavam, desconfio que ansiosas por uma visita que muitas possivelmente não tinham, e passar um bocadinho com esta Tia era sempre uma ocasião feliz. Tinha o vício de dar, aquilo era quase uma doença e a minha sogra, que nos últimos dez ou quinze anos da vida dela lhe fez de mãe, chegava a zangar-se com ela porque lhe comprava coisas necessárias para o bem-estar, camisolas interiores, um casaco para o inverno, meias, coisas assim, e quando lá voltava na vez seguinte já não havia nada porque ela tinha dado tudo ''às minhas irmãs'', como dizia. Era um fartote de rir. A mim, chamava-me sempre num sussurro e entregava-me um saquinho com doces e chocolates que eu muito apreciava. Era uma senhora que apregoava a quem a quisesse ouvir que era muito feliz, muito bem tratada, com muitos amigos e uma vida pleníssima de carinho e alegrias. Possivelmente era contagiosa a paz com que ela vivia e por isso não lhe faltasse a companhia e o carinho e tivesse deixado uma recordação tão doce em todos nós.
Tenho um amigo muito querido que já dobrou os noventa há algum tempo. Como vive muito longe, as ocasiões em que visita Portugal - felizmente são bastantes - são preciosidades que nunca desperdiço e desloco-me aonde for preciso para o visitar e passar um bocado com ele. Numa das últimas vezes, ele estava a recuperar de um abalo de saúde e passou bastante tempo retirado, a descansar. Como a idade é avançada, tememos sempre que a recuperação seja difícil ou mesmo que não aconteça mas esta pessoa é uma fortaleza que já leva muitos, muitos anos a fintar situações de morte iminente e, mesmo quando o corpo dá de si, a cabeça continua de uma precisão nanométrica. No encontro em que estou a pensar, pusemos as notícias em dia, de cá e de lá, amigos comuns, filhos, pais e, quando lhe perguntei se tinha sido bem tratado durante o período do internamento, disse-me que tinham acabado por ser semanas frutíferas porque com a imobilidade não tinha tido alternativa senão passar o tempo a pensar e tinha elaborado verdadeiros tratados filosóficos sozinho no quarto. Este amigo digo quem é porque acho que a história dele devia ser mais conhecida - a primeira vez que ouvi o nome dele foi na TSF, na sequência destas semanas negras que mobilizaram as pessoas como nunca antes nem depois e na altura não me passava pela cabeça que as voltas da vida me levariam a ele - embora também saiba que nunca será ele a tomar a iniciativa de a dar a conhecer. Um dia destes tentarei escrever um post à altura do que ele merece. Por agora conto só que é uma pessoa exclusivamente dedicada ao serviço dos outros, que olha por si apenas na medida em que precisa de ter a máquina oleada para o trabalho a que continua a entregar-se e que as duas únicas ''fraquezas'' que lhe conheço são interessar-se imenso por fotografia e gostar de pastéis de Belém.