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Hoje, a ouvir o Pessoal e Transmissível com o Miguel Esteves Cardoso, senti-me como se o mundo estivesse de pernas para o ar quando ele disse que não se revê na pessoa que era há 20 anos e gozava despudoradamente com os outros por coisas como usarem meia branca ou terem um bigode farfalhudo (as voltas que a vida dá!) e que se arrepende dessa maldade meia gratuita que zelosamente praticava.
A ouvi-lo, transportei-me a outros tempos em que também eu exercia esse tipo de gozo sobre os outros e tinha ao lado um parceiro maravilhoso para a actividade (e todas as actividades de que nos lembrassemos, na verdade) que praticavamos constantemente, gozar, rir, ironizar, uns grandes chatos para quem estivesse ao pé, tendo a nosso favor o pormenor de gozarmos em primeiro lugar com nós mesmos, cada um com o outro e cada um consigo.
Ontem lembrei-me desse tempos gloriosos, ainda mais do que já me lembro todos os dias, porque a minha prima C., com quem eu estava a falar ao telefone, ouviu-me a combinar sair (eram onze da noite) com uns amigos e pôs-se a gozar, a dizer ''vais sair a esta hora? para a noite? pois é, agora andas a investir em ti...'' que é a maneira que a minha irma e as minhas primas arranjaram de gozar comigo, quando querem meter nojo dizem que eu agora ''ando a investir em mim'', uma expressão que acho hilariante. Mas eu acho deveras estimulante que elas gozem, continuamos a ser fervorosas praticantes desse desporto, gozar umas com as outras. Infelizmente nisso (e em tudo o resto excepto a cozinhar e mesmo assim é só uma) nenhuma está à altura do companheiro que há 9 anos perdemos.
As lembranças avivam-se mais e mais a cada dia e já percebi que quando nos acontece a tragédia de perder alguém subitamente e muito antes do tempo, as ondas de choque desse terramoto duram e duram e duram e pode muito bem ser que só ao fim de sete ou oito ou nove anos incorporemos a perda, conquistemos a consciência completa do que deixámos de ter, daquilo em que a nossa vida se transformou e consigamos, finalmente, arrancar de cima o desgosto e convertê-lo numa coisa qualquer que não sei explicar mas que não nos amargura e é doce e agradável e não nos arrasta para recantos sombrios.
Eu só percebi há algum tempo que, desde que o Pedro foi, procuro nos meus amigos, nos primos, na minha irmã, pedacinhos do papel que toda a vida foi dele. Uma por ser muito cómica, outros pela cabeça brilhante e por me poder confiar cegamente nas suas mãos, outro porque me fala de música boa, outro é bom companheiro de viagem, um é mortalmente irónico, todos por gozarem comigo. É ridículo mas, se tivesse que isolar um pormenor de que sinto muuuuita falta, escolhia esse.
Por isso, filhas, gozem comigo, gozem que eu gosto. Digam que ando a investir em mim, que tenho a mania das doenças, o que quiserem. Eu agradeço.
Noutro dia ouvi na rádio uma entrevista a uma actriz que escreveu um livro onde enumera os ditos que ouve da mãe e que são mais ou menos universais, do tipo ''estás tão desagasalhada, estás tão magra, não comes nada'' e que também eu, marmanja com mais de 40 anos, ouço constantemente. Às tantas, dizia a rapariga ''é muito difícil para uma mãe reconhecer que um rabo que limpou centenas de vezes cresceu''.
É mesmo isso.